Quando o Estado diz que “prefere a pecha de gastador a caloteiro” 

Por Fábio Scolari
Advogado do escritório Scolari Neto Oliveira Filho Advogados, especialista em precatórios de servidores municipais e estaduais, membro da Comissão de Precatórios da OAB/SP e do Movimento dos Advogados em Defesa dos Credores Alimentares do Poder Público. 

Em declarações recentes à imprensa, o ministro da Fazenda afirmou “preferir a pecha de ter pago mais precatórios à fama de caloteiro”. A frase, embora pareça apenas retórica política, carrega um peso simbólico e institucional relevante. Quando uma autoridade pública relativiza o pagamento de dívidas judiciais, especialmente as de natureza alimentar, o efeito vai além do discurso: compromete a confiança de milhares de cidadãos que aguardam há anos o cumprimento de decisões judiciais definitivas. 

No âmbito federal, o cenário impressiona pela escala. Dados oficiais da Secretaria de Orçamento Federal (SOF/MPO) revelam que estão inscritos para pagamento em 2025 cerca de R$ 70,7 bilhões em precatórios, distribuídos em 155 mil títulos e envolvendo mais de 250 mil beneficiários. São valores reconhecidos pela Justiça, e nitidamente um retrato da distância entre a decisão judicial e o efetivo cumprimento pelo poder público. 

Já no Estado de São Paulo, a fotografia é igualmente alarmante. Segundo o Tribunal de Justiça (TJSP), apenas em 2024 foram liberados R$ 12,5 bilhões em pagamentos, e, no ano anterior, R$ 19,3 bilhões chegaram a pouco mais de 122 mil credores. Apesar dos montantes expressivos, a fila continua longa e crescente, com títulos que remontam a mais de uma década. 

O passivo estadual segue em patamar bilionário — estimado atualmente em cerca de R$ 39 bilhões, segundo a Procuradoria do Estado —, e a fila cronológica de precatórios parece não ter fim. O que deveria ser um mecanismo de reparação se transformou em uma corrida contra o tempo: para milhares de credores, o tempo é o verdadeiro fator de injustiça. Muitos já faleceram sem ver o direito reconhecido transformado em realidade, e outros continuam esperando, com a esperança sendo corroída a cada novo adiamento. 

A gravidade do tema não está apenas nos números, mas na mensagem transmitida. Ao tratar o pagamento de precatórios como uma escolha entre ser “gastador” ou “caloteiro”, o Estado passa a ideia de que o cumprimento de sentenças é uma opção administrativa, e não uma obrigação constitucional. Tal postura abala um dos pilares fundamentais do Estado Democrático de Direito: a confiança de que decisões judiciais serão respeitadas e executadas com previsibilidade

Essas manifestações também afetam diretamente os credores alimentares, parcela mais sensível dos beneficiários. Professores, policiais, profissionais da saúde e servidores 

aposentados dependem desses valores para garantir sua subsistência. A postergação indefinida dos pagamentos e o discurso que coloca o dever constitucional como variável de ajuste reforçam o sentimento de desamparo e a percepção de que o Estado discute adjetivos enquanto negligencia vidas. 

Além do impacto social, há também um efeito econômico em cascata que fragiliza o país. A chancela de “mau pagador” atribuída ao Estado brasileiro mina a confiança internacional, eleva o custo de crédito e afasta investimentos. Um país que não honra suas decisões judiciais é percebido como um parceiro pouco confiável — e isso repercute diretamente na economia real. Ao mesmo tempo, no plano humano, a demora na reparação de danos causados por negligência estatal, como acidentes, erros médicos ou omissões, aprofunda a sensação de injustiça e descrença na própria função reparadora da Justiça 

A Emenda Constitucional nº 136/25, recentemente promulgada, acentua essa preocupação ao permitir novas postergações sob o argumento de controle orçamentário. O resultado é um ciclo de insegurança jurídica que transforma o direito dos credores em um número a ser administrado. 

Em um país que ainda busca consolidar sua estabilidade institucional, é imperativo compreender que palavras importam. Quando partem de uma autoridade de Estado, moldam percepções e legitimam comportamentos. O cumprimento das decisões judiciais não é uma escolha política — é o alicerce da democracia

Enquanto isso, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) ajuizada pelo Conselho Federal da OAB aguarda apreciação pelo ministro Luiz Fux, relator no Supremo Tribunal Federal. Milhões de credores em todo o país depositam nele a confiança de que a Corte não encampará as distorções trazidas pela emenda. A expectativa é de que o Supremo reafirme o princípio da legalidade e restabeleça o compromisso do Estado com a Justiça, corrigindo o que advogados e entidades classificam como um dos maiores retrocessos institucionais da última década.

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